04 janeiro 2012

O esculacho do esculápio

Prece

Em um terço de meu tempo, somadas todas as horas, inclusive as que deviam ser de sono: sou médico. Normalmente este fato não se evidencia porque uso a escrita e fotografia  justamente para arejar tão árdua jornada, mas, como  não há como evitar de mistura-las, também divido algum relato, afinal, é daí que vem meu mais diverso e inusitado contato humano.

Hoje não dormi nem duas horas. Vejo o dia chegar pela luz que entra das altas janelas, tão altas como inacessíveis e sem cortinas, o que frustra os poucos  momentos que poderiam ser de descanso. 

A madrugada foi de correria, são tantos "deita e levanta" que por fim me rendo, e recosto o corpo breve quase sentado e sem sequer tirar os sapatos.

Algumas pessoas perdem o sono, percebem o que não existe, ficam com medo da vida, ficam pensando na morte; outras brigam com os companheiros, circulam em volta do umbigo ou simplesmente não resistem,  precisam dividir seus enfados, e para isso procuram um pronto-socorro. 
Confesso que prefiro bloquear um infarto ou tirar a dor de um cálculo entalado do que, a estas horas, ter que incorporar  o terapeuta. Confuso, posso dar maus conselhos ou até dizer algo grosseiro.

Era perto das quatro e meia e a linda moça vem com a companheira.  Ambas estão de olhos inchados. A paciente conta que estavam rezando, isso já há algumas horas, tentando evitar  sair de casa desfilou um rosário inteiro. Sofre de síndrome do medo, tem pânico de enfrentar a noite, do dia também guarda receio. Pelo jeito divide o malgrado, pois enquanto lhe escuto com filtros, a amiga continua rezando. Minha formação foi católica, identifico o "salve rainha" - "vida, doçura e esperança nossa, Salve! A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva..." - sussurra em  acelerado ritmo, e associando a uma cena a filme italiano, não consigo controlar certo riso.

"Afinal o que esta se passando?" Responde que esta apavorada: trabalha em um grande banco e esta sendo muito cobrada, depois mistura sintomas, diz que tem problemas em casa, tem uma dor no estômago, fala da mãe e tem arcadas. Repete  a ladainha de queixas que mesmo longas não levam a nada. Diz que faz tratamento, abre a bolsa e despeja  cartelas. São tantos calmantes e hipnóticos, antidepressivos e placebo que penso o que sobra para mim e não vejo o que possa ser feito. Nenhuma chance de alívio a não ser ouvir os relatos, penso na minha cama vazia e na noite atropelada. Procuro melhor abordagem, quem sabe deixa-la dopada, queria eu um sono tranquilo, meu dia será  de ressaca, sem força para este desafio entro na prece afinada:

Salve, Rainha, mãe de misericórdia,
vida, doçura, esperança nossa, salve!
A vós bradamos os degredados filhos de Eva.
A vós suspiramos, gemendo e chorando
neste vale de lágrimas.

Eia, pois, advogada nossa,
esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei,
e depois deste desterro mostrai-nos Jesus,
bendito fruto do vosso ventre,
Ó clemente, ó piedosa,
ó doce sempre Virgem Maria

Rogai por nós santa Mãe de Deus
E mande estas loucas para casa ...




3 comentários:

Ettiene Mattos Farias disse...

Bah!

Marcelo Freda Soares disse...

Esta crônica também foi publicada no Blog do Jornalista Vaz http://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/2012/01/o-esculacho-do-esculapio.html

Marcelo Freda Soares disse...

Por que "bah" ja pegaste coisas piores :)