17 janeiro 2012

Blues


Era sexta-feira. O guia dizia que seria necessário marcar horário, ou então, chegar muito cedo para garantir um lugar a mesa. Nem uma coisa, nem outra, caminhávamos entre os bares e restaurantes sem certeza de estilo, fome ou cardápio. Vindo de um deles reconheci a guitarra e a voz de Muddy Waters em algo como "Gonna need my help" e decidi: é aqui mesmo!  De repente uma sensação de já vivido...

O ano era mil novecentos e noventa e nada, eu, recém-solteiro, parti para Florianópolis para esfriar a cabeça. Minha irmã não podia dar hospedagem pois morava com uma amiga na cidade, sobrou um chalé de uns amigos do namorado dela - dois irmãos surfistas e um arquiteto recém-formado que tentavam se estabelecer naquele estado. Eu meio estranho, mas nem tão deslocado do que já vinha fui albergado,  instalado precário em um colchonete sobre o soalho todo falhado. O primeiro banho (frio) dava ideia do que viria.
Dia seguinte acordo cedo ouvindo a previsão oceânica e uma exclamação grotesca e  mal-educada de que não teriam como pegar onda. Não entendi nada até que a fome fez lembrar que eu vivia de hábitos. Sem café, parti para a praia da Joaquina, umas boas pernadas dividindo assuntos que não dominava. Não posso dizer que não fui aceito, mas até ali ainda julgava: o que estava errado?
Sol, praia, chuva e pouco vento. Abar, aloha, amarradão; batida, bóia, brother; caldo, cabreiro e cabuloso. A tarde mais do novo vocabulário e chuva, depois sol, areia e muito. muito vento.
Das duas: ou alugava uma prancha e me enturmava -o que seria muito improvável - ou partia para outra tribo. Havia a possibilidade de voltar para casa, embora representasse algum fracasso.
Por muito me achava mais velho do que devia, até compreender e  inverter a importância deste tempo, aí, no auge das possibilidades, via-me como um senhor acabado, ridículo por estar costeando qualquer nova experiência.
A noite sai só em direção a Barra. Distante, em contrária caminhada, deixo o chalé a passo. Ao chegar tantos bares e restaurantes, repletos e agitados, receoso e tímido tenho tempo de pensar na vida, no fato de ja ter dois filhos, de fazer muito tempo que não calçava umas sandálias; de julgar o que realmente  interessava, do medo das bolhas e de estar perdido e meio desorientado. Quase retorno, até que vindo de um dos espaços reconheço algo como Albert King empolgando em um  " Blues Power" e me aproximo.
Nunca foi tão rápido fazer amigos, amigos para o resto daqueles dias  e talvez para marcar  outras descobertas que se seguiram. Não precisei pegar onda, nem ter receio de banho gelado, estava em casa, dormindo em um colchonete espiando do soalho os buracos, num chalé que  já parecia  confortável, o primeiro habitat para o que viria a ser reconstruído.

Outra época, outra estada, estou em um país distinto, porém a música, único elo desta caminhada, traz a lembrança que os iguala. Não preciso caminhar só nem sentir-me apartado, como a letra de um blues que fala em passagem, o que tinha que ser foi realizado.


Santiago - Chile - janeiro de 2012


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