17 março 2012

Sexta-feira 16

O relato não seguirá  a precisão dos fatos, mas a forma como foram apresentados.

Manhã.

Poucas coisas podem ser mais importantes em casa do que café,  leite e coca-cola. E a Isabel, minha ajudante, que não aparece há dois dias porque tem asma, e agora  também parece fazer falta.

Acordei mais cedo, engasgado de tanta tosse: refluxo da pesada janta  da véspera ou uma gripe recém iniciada? Também pode ter sido pela variação do clima - primeira noite fria em tantos meses.

Despertei-me surpreso, desta, por estar em casa.

Apesar de itinerante, mantenho hábitos como o de antes do desjejum escovar os dentes, depois,  transfiro as  novidades de um primeiro jornal impresso para a seletiva leitura da internet, ai sim,  acompanhado por  uma larga xícara de café-com-leite,  vejo só o que for leve.

Infelizmente, além da pilha de louça na pia, não havia um grama de café em casa!

Partida.

A sala-de-espera dava ideia de que seria um dia repleto. Cedo pernas quebradas, olhos vermelhos, narinas escorrendo e barrigas inchadas. Não fui o único a levantar pesteado.

Atendimento

Falta pouco.
Lá pelas tantas entre tantos, levantando moral, ataques e desmaios, numa pequena folga intercorrente encontro a possibilidade de um café passado.

Expliquei o que seria um entorse, a mais provável das possibilidades,  e adiantei-me no smartphone a procurar um código -prático: "S- qualquer coisa" em CID traduz  melhor esta doença, e enquanto confirmo  diagnóstico pelo exame, dirijo-me breve  ao refeitório.  São dez horas, e alheio à mundo externo, peço que a senhora acompanhada de sua perceptível mal humorada filha passem para que esta faça um raio (X).

Breve

Já cansado e ofegante lembro da minha secretária do lar dispneica e sua falta, então ligo para meu caçula para orientar o almoço. Afinal o que mais poderia estar faltando na dispensa?

"Filho, se não tiver comida, tira algo do freezer cuidando para que não seja muito, afinal estas de dieta... um beijo e te cuida".

Poucos minutos bastaram até que a chapa estivesse pronta.
O toque da mal-amada: em várias ligações suspeitas fez queixas de que eu estava demorando porque ao invés de atender "a velha" estaria brincando no celular e namorando pelo telefone. E não ficou só na ameaça, mais tarde recebi, como responsável, um telefonema de queixas sobre o acontecido para que tomasse a devida medida... contra mim mesmo!

Trágico

Mas era sexta, e não era 13.
Ao tentar reportar o fato soube de outro mais sério e dramático, uma moça, havia sido incinerada. Era hora de almoço, e alguns colegas presenciaram in loco. Diziam antes que fora ácido, que viram a pele explodir em bolhas; alguém trouxe como mimo: um pedaço de pano e carne...
Fora a poucas quadras dali, e abafou o meu relato; a vitima era conhecida - trabalhava em outra clínica. O marido, recém-separado,  inconformado, ainda segurou um possível salvador à arma. Sádico assistia as chamas - aí  já era gasolina, querosene ou pano embebido em álcool- culminou o sacrifício com um passante, na tentativa de apagar a vítima, sufoca-la  com extintor de carro.

Assalto

Passam as horas arrastadas; a tosse, minha e acompanhada; as pernas, minhas cansadas, mais as demais lesionadas;  e a difícil tarefa esquecida: afastar uma colega, definitivamente da escala.
Dela a queixas eram mais completas, ricas, reais  e elaboradas, mas por ética e bom senso ficarão por mim seladas.
Chamei-a em um momento difícil à conversa privada. Lá vem ela correndo, branca e agitada. Pensei que soubesse o motivo mas carrega outra novela:  havia deixado um amigo em uma agência bancária, cinco minutos antes desta ser assaltada: tiroteios, violência, feridos, polícia, bandidos e portas lacradas...
Não tive coragem de entrar no outro assunto, ainda mais, quando novas histórias chegaram.

Mórbido

Não adiantou evitar os diários, notas vem de todos os lados. Houve um acidente horrível na estrada, morreram vários. Destes dois conhecia, muita consternação e abalo.

Mensagem

De tudo... só um café me fez falta.


PS: o jornal que não li:

2 comentários:

Maria da Graça Reis disse...

Como sempre, pela brilhante descrição dos fatos parece que estou contigo, vivenciando as situações. Que venham dias melhores !!!!!

fábio rosário disse...

Maravilha de texto Marcelo. Faz algum tempo que lhe sigo, aqui e no face, e acompanho seu trabalho comunicacional junto a minha lista de favoritos e na seleta peneira que faço diarimente nas redes e na web em geral. De acordo com a leitora e comentarista Maria "pela descrição dos fatos parece qu estou contigo". Acho seu trabalho fantástico, bárbaro e magnifico. Tenho como profissão o jornalismo ( hj trocada pela culinária) mas é com pessoas como vc que vejo que o jornalismo é, simplesmente é, e nada mais, Nos aureos tempos da imprensa muitos se destacaram assim, tendo como profissão outra atividade e descrevendo fatos e fotos como ninguém. Parabéns!! forte abraço!!